terça-feira, 10 de julho de 2012

Reintegração de Posse


Este é o violão e aquela ali é a gata félix


Depois de um dia lá no sítio eu não quis trazer o meu violão pra casa, ele é mais útil por lá, tem mais gente com mais frequência, aí o pessoal pode fazer as festinhas com rodinha de violão, assim pensei.

O fato foi que o instrumento acabou ficando guardado em cima dum armário. Vez em quanto eu ainda aparecia, me lembrava do meu querido violão barato, pegava ele, alisava, tirava os quilos de poeira de cima e atazanava os ouvidos de quem tivesse a péssima sorte de estar por ali.

Aconteceu de eu ficar algumas semanas sem triscar nele, que continuou ali, paradão, na cozinha, sobre a estante, até que um dia eu resolvi trazer ele pra casa... saudades.

Pra minha surpresa, e pra deles ainda mais, descobri que havia uma família de ratos morando ali, dentro do meu precioso. Fizeram ele de apartamento. E ainda fizeram obras para aumentar o conforto. Roeram as cordas do meu queridão, o que é compreensível, pois as cordas pareciam grades na porta e faziam o lugar parecer uma cadeia. Decidiram também ampliar a porta. Talvez sob influencias gaudinianas ou niemeyeranas, optaram por um desenho de porta assimétrico, torto, extremamente futurista. Design arrojado e vanguardista. Roedores artistas.

A reintegração de posse não foi muito amistosa. Infelizmente, naquele momento, apenas dois moradores estavam em casa e eram menores de idade. Descobri isto ao sacolejar o violão para retirar um monte de folhas e pedaços de coisas que estavam lá dentro. Era a mobilha da casa, provavelmente a cama, ou ninho, como queiram. Pra meu espanto, no sacolejo, dois filhotes caíram no chão, ali, na minha frente. Se eles pudessem ver - e não podiam porque ainda não havia lhes abrido os olhos - teriam visto a minha cara e certamente se assustariam com ela. Na verdade acho que qualquer ser vivente se assustaria com a minha cara. Mas o que interessa a minha cara? Há, minha cara! Minha cara não interessa. O que interessa é que dois inocentes estavam ali, no chão, fazendo aquele barulhinho que você conhece e que acabou de ouvir ai dentro da sua cabeça. É este mesmo.

Deixei-os no jardim exatamente onde caíram, deixei mesmo. Foi um ato de crueldade extrema. Mas eles haviam destroçando meu querido, meu companheiro de solidão, meu queridão. Estavam morando de graça, fizeram reformas sem me consultar, encheram de entulho o lugar, bagunçaram a zorra toda. Conheço gente que teria esmagado eles com a sola dos sapatos, eu não esmaguei, apenas me afastei e torci para que o papai rato ou a mamãe rato aparecessem para resgata-los antes das formigas, das cobras, dos teiús ou do Romeu - viúvo da Julieta, ambos cachorros do meu pai (bem, ela não é mais).

Da sorte dos bebês não tive mais notícias.
Quanto ao violão, dei apenas uma lixada nas bordas roídas e estou louco pra saber como vai ficar o som depois da intervenção dos pequenos lutieres. A primeira música que vou tocar será uma homenagem aos meus pequenos parentes mamíferos. Antes do primeiro acorde, vou erguer uma taça, dizer algumas palavras bonitas e vou pensar neles por alguns segundos.

Depois de alguns goles, a liberdade trazida pelo torpor talvez acabe por, involuntariamente, comprimir as minhas glândulas, o que pode, porventura - assim, sem ninguém perceber - expulsar uma lágrima que, definitivamente, não fará diferença nenhuma na história humana, ou, pelo contrario, estará eternamente, por mais que ninguém jamais tome conhecimento, incrustada nos anais das histórias desconhecidas.

Pobres ratinhos.

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